O texto de hoje teria sido o primeiro da newsletter, se outros assuntos mais atuais não tivessem passado na frente. Ele foi escrito há quase dois anos, originalmente. A ideia era usá-lo no blog do selo, e mantê-lo lá como uma apresentação. Como quase ninguém acessa o site fora a parte da loja, e realmente ninguém lê o blog, aqui está ele pra vocês.
O título desta edição é composto de duas perguntas parecidas, mas diferentes, que eu ouvi bastante desde que anunciei e comecei a promover o Selo Harvi.
A primeira pergunta é fácil de responder: é uma abrasileiração de "Harvey", por causa do grande Harvey Pekar. A segunda, bem, tem uma resposta um pouco mais longa.
Outro dia terminei de assistir uma série curta. Não vou revelar o título para não ser perseguido pela tal Polícia do Spoiler. A série é bem legal: divertida, personagens interessantes e carismáticos, engraçada quando precisa ser, etc. Mesmo assim, o final me incomodou um pouco. O protagonista, depois de "tentar de verdade", acaba conquistando tudo que sempre sonhou: amor, família, fama, fortuna, realização profissional e respeito no seu meio. Um meio que, digamos, oferece muito pouco disso, mesmo para quem está no topo (não, não é quadrinhos, mas poderia ser).
[Nota: escrevi esse texto há muito tempo e já não lembro qual série era essa. Maldita Polícia do Spoiler! Mesmo assim, lembro bem do sentimento. Como diz Conor Oberst: "the reasons all have gone away, but the feeling never did."]
Deixando de lado a leitura meritocrática de tudo isso (que entendo ser a mais próxima da intenção dos autores da série), é possível que estejamos diante de um prodígio. Alguém único, que aparece a cada cem anos. Um escolhido. E é aí que fica chato, pelo menos pra mim.
Nunca fui muito de acreditar em escolhidos. Quando criança, meu herói favorito era o Homem-Aranha, em grande parte porque ele era um fodido. Nada de escolhido, só um cara cheio de problemas que, por sorte (ou azar), ganhou uns poderes e teve que aguentar o tranco. Ultimamente, a Marvel tem se esforçado para transformá-lo num escolhido, nos quadrinhos e, principalmente, nos filmes, é verdade. Mas, pra mim, a essência do personagem sempre foi ser um cara comum (não o cara comum — porque não existe só um).
Outro cara comum dos quadrinhos é Harvey Pekar. Pekar, o cara que fazia quadrinhos autorais e autobiográficos sem saber desenhar, basicamente levando na base da lábia os seus amigos artistas. O filho de imigrantes judeus da classe trabalhadora. O cara que virou filme, mas trabalhou até se aposentar como arquivista num hospital público. Que fez tudo na base da insistência.
Fazer essa conexão com o nome dele pode sugerir que o selo seja focado em histórias autobiográficas - o formato que Pekar mais usou e que o tornou relativamente famoso. Mas não é bem isso. Também não é só pelo foco em quadrinhos mais pessoais — que são de fato o foco do selo e também uma marca de todos os trabalhos de Pekar, até os mais jornalísticos. Na verdade, acima de tudo, vejo nele um modelo de COMO fazer quadrinhos... ou qualquer outra coisa.
Harvey Pekar certamente não era um abnegado. Se vivia com pouco, era mais por necessidade do que por ideologia. Se lhe oferecessem milhões por suas histórias, ele teria aceitado na hora. Nunca recusaria dinheiro: pelo contrário, sempre arrumava jeitos criativos de ganhar um troco extra. Mas também não via o dinheiro como O grande motivo pra fazer as coisas. Pekar sabia que dinheiro é só um meio pra conseguir fazer o que a gente quer neste mundo — não um fim em si mesmo.
Em uma de suas histórias, Pekar diz, numa tradução livre:
“Eu sou um dos mairoes esnobes que há, mas dinheiro é um péssimo medidor do valor de uma pessoa. A régua que eu uso é o que uma pessoa escolhe fazer com a vida dela. Então, pra mim, um músico que não consegue pagar as contas (alguém que se dedica ao ofício, não um vagabundo) é muito melhor do que um banqueiro investidor patético.”
Dá pra dizer que, perto do fim da vida, Pekar alcançou reconhecimento e alguma estabilidade financeira, mas foi tudo na base da teimosia. Na maior parte do tempo, ele fez quadrinhos porque via valor no ato em si, mesmo sem conseguir viver deles.
Eu nunca fui o cara que desenhava bem na escola, e demorei muito, muito tempo até pegar um lápis e começar a fazer quadrinhos. Acabei começando com muito mais vontade do que técnica, na base da insistência. Tudo que veio depois tem sido assim: trabalho de formiguinha, um dia após o outro. Definitivamente, também não sou nenhum escolhido dos quadrinhos. Não, não sou eu o cara que vai salvar o quadrinho brasileiro (até porque essa posição já tem dono). Assim, até por identificação, sempre gostei mais das formiguinhas do que dos prodígios. Acho que o melhor elogio que já ouvi sobre minha carreira foi do Ciro Marcondes, no podcast Raio Laser. Ele disse algo como "o KZ é um guerreiro". Eu tento.
Assim como Pekar, eu tenho um dayjob, e não sei se um dia vai deixar de ser assim. Meu outro trabalho me estressa e, muitas vezes, não me deixa tanto tempo pra fazer quadrinhos quanto eu gostaria ou precisaria. Se me oferecessem milhões pra fazer quadrinhos, eu aceitaria na hora. Mas isso não vai acontecer, então seguimos na luta.
No fim das contas, a maior afinidade que sinto com Harvey Pekar não é pelo estilo, os temas ou mesmo a rabugice. É essa resistência, essa teimosia. É esse espírito que tento trazer pro selo: o de fazer as coisas na marra, porque alguém tem que fazê-las. Se vai "dar certo" ou não, aí são outros quinhentos. Não faço ideia de onde eu e o selo vamos chegar com isso, mas se lançarmos uns quadrinhos fodas pelo caminho, já terá valido a pena.
-KZ
Na próxima edição vem continuamos nesse tema geral, mas olhando de outro lado. Vou responder a outra pergunta frequente: “por que um selo, e não uma editora?” Até lá!
FALANDO NISSO…
Esta já está virando uma sessão permanente (não era a intenção), não é mesmo?
Mas, já que estamos falando de Harvey Pekar, tenho que recomendar que vocês o leiam, se ainda não o fizeram.
Aqui no Brasil, infelizmente, poucas obras dele foram publicadas. Temos Os Beats, ilustrado por Ed Piskor, que conta histórias da tal geração Beat, e Não É A Israel Que Meus Pais Me Prometeram, desenhada e co-escrita por J.T. Waldman, em que Pekar se debruça sobre a distância entre a propaganda que seus pais lhe faziam sobre o então recém-formado país e a realidade do que ele se tornou diante de seus olhos. Ambos são bons quadrinhos, especialmente esse sobre Israel, porém não são tão representativos da maior parte da obra dele, nem tão bons quanto o resto dela, na minha opinião.
O que é fácil de encontrar, e que eu imploro que você assista, se ainda não o fez, é o filme baseado em seus quadrinhos, aqui no Brasil entitulado Anti-Herói Americano. Lançado pela HBO, o filme se encontra no catálogo da MAX (antiga HBO), ao menos no momento desta publicação.
Uma mistura de documentário e adaptação de suas histórias, o filme é incrivelmente fiel ao espírito da obra, e certamente uma das melhores adaptações de quadrinhos para o cinema já feitas. Paul Giamatti está incrível no papel principal. Esse é um dos filmes que eu revejo de tempos em tempos, e sempre me anima. Não há nenhum problema em assistir o filme antes de ler os quadrinhos de Pekar, e, de fato, pode até ser uma porta de entrada interessante (viu, Giba?). Então vá sem medo!
(Em tempo: à época do filme, a Conrad lançou Harv & Bob - Dois Anti-Heróis Americanos, já fora de catálogo mas ainda facilmente encontrado em sebos. É excelente material, da mais alta qualidade, mas ainda peca por focar apenas nas histórias ilustradas por Robert Crumb. Diferentes artistas trabalhavam de maneiras diferentes com Pekar, então eu diqira que ao focar em apenas um deles, por melhor que seja, perde-se a dimensão do trabalho que ele realizou.)
Discordo respeitosamente. Se eu assistir o filme antes de ler todas as HQs e ouvir todos os discos dele, eu com certeza não entenderei nada. u.u